20 setembro 2010

263. A semente

Quem melhor do que Marcelo D2, com seu canto (quase) falado, cheio de malandragem carioca na voz (dicção desenvolvida em botecos) e confluência no ritmo para regravar Bezerra da Silva: suas canções e malemolências?
O disco Marcelo D2 canta Bezerra da Silva (2010) é pura festa, esperteza e passeio pelas rodas cariocas de samba e prosa. Uma merecida homenagem a um artista de tempos pré politicamente corretos e, por isso, cirúrgico em suas interpretações.
Em "A semente", de Roxinho, Valmir da Purificação, Tião Miranda e Felipão, Marcelo D2, recuperando ponto por ponto o gesto vocal de Bezerra, dá voz a um sujeito que conta (e nisso a dicção da D2 só acrescenta à canção: a atitude de contar) a história de uma certa semente que faz brotar uma planta muito suspeita (de cheiro bom), no quintal, do vizinho.
Malandro, o vizinho finge desconhecer a procedência do mato, que logo desperta a desconfiança dos homens (da polícia). O interessante aqui é que, para acrescentar significado à mensagem, o sujeito faz uso de termos e expressões identificadas com o universo do cara esperto, que sabe driblar, pela imposição da própria vida, as normas sociais: sérias e chatas. Além de obter vantagens sobre as intempéries.
A saída (o modo de tentar enganar as autoridades) é bem humorada: "Não sou agricultor, desconheço a semente", diz o vizinho. A empatia com o ouvinte, portanto, vem tanto do tom jocoso, quanto dos elementos típicos da palavra falada, cotidiana. O sujeito, assim, traz o ouvinte para perto de si, conta a história e descontrai qualquer má impressão, sobre o tal vizinho.
O coro que, vira e mexe, acompanha a voz do sujeito e canta o refrão, intensifica a imagem da cena que é cantada (e contada) em roda: acompanhada de cerveja, churrasco e, claro, muita camaradagem. Afinal, malandro que é malandro não dedura o outro, como fez a personagem que entregou o vizinho do sujeito à polícia. Embora hajam certos (e instigantes) conflitos, pois todos querem se dar bem, há ética (regras do jogo) na malandragem.
Fica evidente que a tal planta era ilícita. E a voz do (ex)líder de um planeta hemp tem a sensibilidade para regravar a canção: impor novas cores, penetrando em caminhos sonoros (aparentemente) distantes de seu percurso, e reativar a graça da malícia do canto de Bezerra da Silva.

***

A semente
(Roxinho / Valmir da Purificação / Tião Miranda / Felipão)

Meu vizinho jogou
Uma semente
No seu quintal
De repente brotou
Um tremendo matagal

Quando alguém
Lhe perguntava
Que mato é esse
Que eu nunca vi?
Ele só respondia
Não sei, não conheço
Isso nasceu ai

Mas foi pintando sujeira
O patamo estava sempre
Na jogada
Porque o cheiro era bom
E ali sempre estava
Uma rapaziada

Os homens desconfiaram
Ao ver todo dia
Uma aglomeração
E deram o bote perfeito
E levaram todos eles
Para averiguação e daí

Na hora do sapeca ia-ia
O safado gritou:
Não precisa me bater,
Que eu dou de bandeja
Tudo pro senhor
Olha aí eu conheço
Aquele mato, chefia
E também sei
Quem plantou

Quando os federais
Grampearam
E levaram
O vizinho inocente
Na delegacia ele disse
Doutor
Não sou agricultor
Desconheço a semente

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