A primeira imagem, descrita nos primeiros versos, de "Dor de cotovelo", de Caetano Veloso, dá a dimensão exata da pulsação que atravessará a canção: alguém, com os cotovelos apoiados em uma mesa (de boteco?) e com as mãos, em desespero, aterradas e puxando os cabelos. Daí que, "o ciúme dói nos cotovelos, na raiz dos cabelos, gela a sola dos pés": o frio de ser sozinho, a certeza de que o mundo não gira em torno de nós.
O ouvinte "vê" esta personagem tomada completamente pelo ciúme, que fere a garganta do sujeito que canta, não sem significado, pela voz arranhadamente bela (timbre único) de Elza Soares (Do cóccix até o pescoço, 2002).
O sujeito deixa escapar que "como todos os grandes apaixonados, gosta da delícia da perda de si, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente", como Fernando Pessoa sugere em seu Livro do desassossego. A alma que Elza Soares empresta à canção é comovente. As ênfases dadas a determinadas sílabas poéticas, como em "'pó' do osso", por exemplo, apertam a sensação de sufoco do sujeito da canção.
E aproxima-o do ouvinte, já que não há quem não tenha experimento tal momento alguma vez: tudo o que o ciúme provoca. O clima de enfado (falta de apetite) filosófico do sujeito, que não consegue ultrapassar o sentimento que lhe tortura, é acompanhado pela melodia que, por vezes, parece querer desistir de seguir: quer tornar-se sã da loucura. Mas persiste e dói.
O ciúme, como o amor, não precisa do outro para ser: roendo, serpenteia no sujeito. Da pele ao osso; do cóccix ao pescoço está tudo dominado, arrastando o sujeito em passeio vertiginoso por si. Afinal o ciúme não deixa de ter uma ponta de egoísmo: "acende uma luz branca em seu umbigo". Aliás, ao dizer "seu", falando de si, o sujeito aponta que tal vivência é compartilhada com quem ouve: cúmplice por também ter momentos iguais.
Passamos a amar o inimigo: ao cantar o ciúme, damos vida a ele, fazemo-lo viver, em nós. Desviamos mesmo a atenção, de nosso objeto de desejo, para o ciúme (minha dor), que, agora, é a coisa mais importante do mundo. Em detrimento da pessoa que o "despertou".
"As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas", define Pessoa. Os versos de "Dor de cotovelo", e as imagens que eles plasmam, são delicados, cirúrgicos e aterradores. O ciúme, de fato, atravessa a voz (pelo modo passional com que Elza Soares canta) e a melodia (pelo arranjo lento tematizando a dor).
Em momentos assim, o sol arde ao fim do dia: qualquer luz externa a minha dor é motivo de intensificador dela, pois o mundo não pode sorrir enquanto eu sofro. Eis a arte da canção: "A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é", aponta a personagem de Pessoa.
O sujeito da canção tenta traduzir seus sentimentos em linguagem que nós, ouvintes, entendemos, pela cumplicidade. Passamos a sentir e entender a intimidade do sujeito. E ele, assim, atinge sua intenção: ter todos os ouvidos voltados para si, para sua "dor de cotovelo".
O ouvinte "vê" esta personagem tomada completamente pelo ciúme, que fere a garganta do sujeito que canta, não sem significado, pela voz arranhadamente bela (timbre único) de Elza Soares (Do cóccix até o pescoço, 2002).
O sujeito deixa escapar que "como todos os grandes apaixonados, gosta da delícia da perda de si, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente", como Fernando Pessoa sugere em seu Livro do desassossego. A alma que Elza Soares empresta à canção é comovente. As ênfases dadas a determinadas sílabas poéticas, como em "'pó' do osso", por exemplo, apertam a sensação de sufoco do sujeito da canção.
E aproxima-o do ouvinte, já que não há quem não tenha experimento tal momento alguma vez: tudo o que o ciúme provoca. O clima de enfado (falta de apetite) filosófico do sujeito, que não consegue ultrapassar o sentimento que lhe tortura, é acompanhado pela melodia que, por vezes, parece querer desistir de seguir: quer tornar-se sã da loucura. Mas persiste e dói.
O ciúme, como o amor, não precisa do outro para ser: roendo, serpenteia no sujeito. Da pele ao osso; do cóccix ao pescoço está tudo dominado, arrastando o sujeito em passeio vertiginoso por si. Afinal o ciúme não deixa de ter uma ponta de egoísmo: "acende uma luz branca em seu umbigo". Aliás, ao dizer "seu", falando de si, o sujeito aponta que tal vivência é compartilhada com quem ouve: cúmplice por também ter momentos iguais.
Passamos a amar o inimigo: ao cantar o ciúme, damos vida a ele, fazemo-lo viver, em nós. Desviamos mesmo a atenção, de nosso objeto de desejo, para o ciúme (minha dor), que, agora, é a coisa mais importante do mundo. Em detrimento da pessoa que o "despertou".
"As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas", define Pessoa. Os versos de "Dor de cotovelo", e as imagens que eles plasmam, são delicados, cirúrgicos e aterradores. O ciúme, de fato, atravessa a voz (pelo modo passional com que Elza Soares canta) e a melodia (pelo arranjo lento tematizando a dor).
Em momentos assim, o sol arde ao fim do dia: qualquer luz externa a minha dor é motivo de intensificador dela, pois o mundo não pode sorrir enquanto eu sofro. Eis a arte da canção: "A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é", aponta a personagem de Pessoa.
O sujeito da canção tenta traduzir seus sentimentos em linguagem que nós, ouvintes, entendemos, pela cumplicidade. Passamos a sentir e entender a intimidade do sujeito. E ele, assim, atinge sua intenção: ter todos os ouvidos voltados para si, para sua "dor de cotovelo".
***
Dor de cotovelo
(Caetano Veloso)
O ciúme dói nos cotovelos
na raiz dos cabelos
gela a sola dos pés
Faz os músculos ficarem moles
e o estômago vão e sem fome
Dói da flor da pele ao pó do osso
Rói do cóccix até o pescoço
Acende uma luz branca em seu umbigo
Você ama o inimigo e se torna inimigo do amor
O ciúme dói do leito à margem
dói pra fora na paisagem
arde ao sol do fim do dia
Corre pelas veias na ramagem
atravessa a voz e a melodia
(Caetano Veloso)
O ciúme dói nos cotovelos
na raiz dos cabelos
gela a sola dos pés
Faz os músculos ficarem moles
e o estômago vão e sem fome
Dói da flor da pele ao pó do osso
Rói do cóccix até o pescoço
Acende uma luz branca em seu umbigo
Você ama o inimigo e se torna inimigo do amor
O ciúme dói do leito à margem
dói pra fora na paisagem
arde ao sol do fim do dia
Corre pelas veias na ramagem
atravessa a voz e a melodia
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