03 setembro 2010

246. Para se fazer uma canção

"Para se fazer uma canção" (Zoombido, 2006) é resultado de um esforço coletivo na vontade de pensar a feitura da canção popular: o que faz (e como se faz) uma canção?
A partir do mote dado por Moska, como processo motivado e motivador de seu programa televisivo Zoombido, vários cancionistas glosaram (deram seu quinhão de voz) aquilo que lhes mobilizam a fazer uma canção.
Cada verso é dito (cantado), desde da abertura (e orquestração) de Moska, por uma voz diferente, a fim de indicar que a canção, no fundo, por mais que tenha um autor conhecido e registrado, quando lançada no mundo (reverberando nas ondas do rádio), é de todos e de ninguém.
Em seu Livro do desassossego, Fernando Pessoa sentencia que "a arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação". A voz, que canta, portanto, é a voz do cantor, mas passa a ser, também, a voz de que ouve, pois canta aquilo que este quer ouvir.
Para se fazer uma canção é preciso saber que "para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti".
"Para se fazer uma canção" é metacanção na medida em que se volta para si mesma: investiga aquilo que lhe constitui enquanto canção. Desdobramentos do eu e consolo transmetafísico: fim de um deserto, para entrar, tão logo a canção se finde, noutro.
Assim, ao proliferar significantes que investigam aquilo que é preciso para se fazer uma canção, o sujeito conclui que o canto é tentativa de conto daquilo que lhe vai por dentro. Atravessado por várias vozes, marcado pelos resíduos que ficaram na cultura que ele recebeu ao nascer, o sujeito (ou seja, a canção) é voz individual e coletiva: é de ninguém, ao ser de todos. E o inverso disso.
Pessoa continua: "Como este outrem [para quem faço a canção] é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti".
Não é outra coisa o que os cancionistas (as vozes) de "Para se fazer uma canção" fazem. O esforço estético de desfazer as malas do coração; do sobrevoo na solidão; e, essencialmente, da ascensão da imaginação condensam a verdade estética (a única verdade possível) da obra: da canção.
Quem canta carrega a vida na voz: tem o coração sangrando. "Quando eu estiver cantando não se aproxime", Cazuza cantou (em quase êxtase) para apontar que querer se aproximar demais da vida em chama é perigoso e põe em risco nossas verdades pré-fabricadas. Ter uma canção é não precisar de mais nada.

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Para se fazer uma canção
(Moska / Gilberto Gil / Zélia Duncan
Nando Reis / Toni Garrido / Mart´Nália
Otto / George Israel)

Para se fazer uma canção (Moska)
Desfaço as malas do meu coração (Vander Lee)
Eu sobrevôo minha solidão (Pedro Luis)
E encontro o fim de um deserto (Celso Fonseca)

Para se fazer uma canção (Frejat)
Um som, um céu sem direção (Zé Renato)
Como eu não previ, como eu nunca sei (Leoni)
O amor que dei (André Abujamra)
Acho a luz no fim da escuridão (Jorge Vercilo)
E ascendo a imaginação (Joyce)
Olá, você ai (Gilberto Gil)
Que bom te ouvir (Toni Garrido)
E eu não preciso de mais nada (Mart´nália)
Por isso corro nas calçadas, corro nos seus pensamentos (Otto)
Alentos pra solidão (Zélia Duncan)
Passaporte pra dentro da alma (George Israel)
E você que vem com pressa, calma (Oswaldo Montenegro)
Dor adeus, Deus perdão (Zeca Baleiro)
Dois, amor, doeu? (Nando Reis)
Mas como é bom! Mas como é bom! (Jorge Mautner)
E quando é bom é tudo seu (Lenine)
E eu sou teu, você e eu (Sergio Dias)
Na imensidão a sós (Flavio Venturine)
Essa é minha voz (Isabella Taviani)
Que é a sua voz também (Vitor Ramil)
E a canção é de ninguém (Chico César)

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