17 agosto 2010

229. Sereia

Para Temístocles Ferreira

Como descrever a musa? Como tornar perceptível pelos cinco sentidos aquilo que está além da percepção comum: que é atravessado pela subjetividade? Eis o mote de "Sereia", canção de Lulu Santos e Nelson Motta (Eu e memê, memê e eu, 1995).
Uma cadeia de significantes é proliferada ao longo da letra, a fim de presentificar a sereia: ela canta a vida de/para o sujeito e este, por sua vez, retribui com uma canção embalada por um melodia que em tudo remete o ouvinte ao balanço do mar.
Como diria uma personagem de Guimarães Rosa, "Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo". Nós, ouvintes da canção, só percebemos a magia da sereia (o milagre que acontece na nossa frente) pelo canto elogioso do sujeito. Arrebatado pela beleza, ele a canta, para nós.
Sol e lua se deixam entrever na figura da sereia-mulher que guia o sujeito. Ela, a sereia, é a condensação dos opostos: a certeza da vida, felicidade (de sabe-la existir) e de melancolia (de sabe-la livre, de nós).
Tudo é desejo. E desejar requer certa consciência do afastamento necessário entre sujeito e objeto. Ter o objeto (de desejo) é matar o desejo (e o objeto) em nós. O sujeito de "Sereia" tenta tê-la, a musa, no canto: e a tem (parcialmente).
O desejo pela sereia gera oásis no horizonte da paisagem do sujeito. Narciso, no espelho dessas águas (ele está navegando) vê a face luminosa do amor: promessa de felicidade - festa da vontade.
Como oásis - porto (in)inseguro) - o horizonte gera a dúvida, que no fundo move o sujeito: o que ele vê é sereia ou delírio tropical? Pouco importa. O importante é o canto que se faz. A dúvida suspende o juízo (certezas movediças) e leva o sujeito a cantar, mergulhando no mar do desejo.

***

Sereia
(Lulu Santos / Nelson Motta)

Clara como a luz do sol
Clareira luminosa
Nessa escuridão
Bela como a luz da lua
Estrela do oriente
Nesses mares do sul
Clareira azul no céu
Na paisagem
Será magia, miragem, milagre
Será mistério

Prateando horizontes
Brilham rios, fontes
Numa cascata de luz
No espelho dessas águas
Vejo a face luminosa do amor
As ondas vão e vem
E vão e são como o tempo

Luz do divinal querer
Seria uma sereia
Ou seria só
Delírio tropical, fantasia
Ou será, um sonho de criança
Sob o sol da manhã

Nenhum comentário:

Postar um comentário