16 agosto 2010

228. Quem canta seus males espanta

Para Zigmund Bauman, "ter uma identidade fixa é hoje, nesse mundo fluido, uma decisão de certo modo suicida". De fato, as discussões sobre as possibilidades de identidades múltiplas, que o usuário de internet manipula, precisa ser visto (e analisado) no lugar de sua emergência.
Ou seja, não são os aparatos tecnológicos que criam as ambiguidades nas relações entre o eu e o outro. Os suportes, na verdade, apenas tiram o véu da certeza cartesiana: desnudam nossa constituição múltipla e frágil (na medida em que, mutável).
Pela potência de anonimato, o ciberespaço auxilia o indivíduo na brincadeira de viver e se transformar em outros, que, na real, é ele mesmo. Os fakes da internet são facetas (máscaras sociais) do indivíduo que lhes cria. Indivíduo e fake (eu e o outro) não estão, nem são, dissociados.
As identidades são sempre múltiplas, contrariando a unidade defendida pelo cartesianismo: a filosofia e a psicanálise já colocaram isso em crise. Deste modo, o sujeito de "Quem canta seus males espanta", de Itamar Assumpção, pulveriza o desejo (todo humano) de ser muitos.
Cantada por Zélia Duncan - em um disco que, lucidamente, se chama Eu me transformo em outras (2004), verso da canção sob análise, e que tem uma litografia de Jean-Baptiste Debret (Cena de carnaval), em que uma moça preta, para brincar o entrudo, pinta a cara de branca -, a canção é a voz do cancionista tomado pelo poder da canção. É ela quem lhe fornece as energias necessárias para, fugindo do cotidiano, transformar-se em outras que, na verdade, não passam de desdobramentos do próprio sujeito.
Cantando, o sujeito espanta os males exatamente porque ele se multiplica. Sem a necessidade e o peso de ser um, o sujeito, teoricamente, pode viver mais e melhor: "desgraça vira encanto". Daí a sugestão ao espaço/tempo do carnaval na capa do disco.
O sujeito da canção, ambíguo (plural), teme e não teme "os outros" que vivem dentro dele. São eles quem ajudam o sujeito a se movimentar no mundo: possibilitando a adequação às dores e delícias e viver. Cantar é rezar duas vezes: é espantar os males, é desdobrar-se.
No palco, quando solta a voz, o cantor (o intérprete) é outro, sem deixar de ser ele. O outro (em ebulição de gritos de liberdade: tesão por dentro) sai e eis, em cena, uma pessoa sangrando: transformada em outras. Cantar é mais do que viver, do que sonhar, é ter o coração daquilo (que se canta).
"Sereia eis minha sina", sentencia-se o sujeito da canção. Seu destino é cantar (desesperado e nu) a vida, para si e para os outros. Afinal, mesmos que os cantores sejam falsos (e são, pois são múltiplos) são bonitas (e necessárias) as canções.

***

Quem canta seus males espanta
(Itamar Assumpção)

Entro em transe se canto, desgraça vira encanto
Meu coração bate tanto, sinto tremores no corpo
Direto e reto, suando, gemendo, resfolegando
Eu me transformo em outras, determinados momentos
Cubro com as mãos meu rosto, sozinha no apartamento
Às vezes eu choro tanto, já logo quanto levanto
Tem dias fico com medo, invoco tudo que é santo
E clamo em italiano ó Dio come ti amo

Eu me transformo em outras, determinados momentos
Cubro com as mãos meu rosto, sozinha no apartamento
Vivo voando, voando, não passo de louca mansa
Cheia de tesão por dentro, se rola na face o pranto
Deixo que role e pronto, meus males eu mesma espanto

Eu me transformo em outras, determinados momentos
Cubro com as mãos meu rosto, sozinha no apartamento
É pelos palcos que vivo, seguindo o meu destino
É tudo desde menina, é muito mais do que isso
É bem maior que aquilo, sereia eis minha sina

Eu me transformo em outras, determinados momentos
Cubro com as mãos meu rosto, sozinha no apartamento

2 comentários:

  1. quem canta, quem dança, quem grita, quem assovia, quem murmura seus males espanta, de verdade! disco maravilhoso!

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