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04 agosto 2010

216. A cidade

Para Ricardo Moreira

E assim se passaram muitos anos. Descrever a alegria de viver (a comoção) que o surgimento o movimento Mangue Beat proporcionou na grande Recife, e imediações, é complicado: a memória afetiva é forte e embaça, deliciosamente, a imparcialidade. Ligar o rádio, em um dia morno na Paraíba, e ser banhado com a potência do som da Nação Zumbi foi um momento único e revelador da existência.
Cria tropicalista, apesar de alguns componentes da cena mangue beat negar a relação entre os movimentos, o desejo era "modernizar o passado": proporcionar uma evolução musical. Bem ao modo do "retorno à linha evolutiva" tropicalista.
De todo modo, Chico Science & Nação Zumbi (e afins), da lama (núcleo da cultura/essência pernambucana) ao caos (da cidade), agregaram (misturaram e hibridizaram) elementos da história (sonora) às possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias (sonoras).
Mas, como já se insinua aqui, o Mangue Beat ultrapassou os limites da canção. Havia uma vontade de valorização do humano: emaranhado no excesso, e na falta, que a "civilização" oferece. Sem medo das origens, a cena mangue implodiu (com tiro certeiro) um espaço violento e cantou a glória de um sociedade.
Choque de ordem, estuário (da lama ao caos do caos a lama: parabólica fincada no mangue), o movimento dos caranguejos com cérebro mostrou que há vida no mangue: e, além, que o mangue oferece riqueza ao ciclo da existência.
A canção "A cidade", de Chico Science (Da lama ao caos, 1994), narra a construção da metrópole e, de viés, os fundamentos que resultaram na caos da vida contemporânea. Do limão à limonada.
A música tematiza a mistura (algo caótica) da letra: extratos da cultura popular (sonoridades dos maracatus, cirandas, caboclinhos...) aliados à eletrônica (samples, sintetizadores...).
Batuque e computador manipulados pelas mãos do artista, cidadão irado com a situação (sufoco) sócio econômico, cantando o ciclo da injustiça: o de cima sobe e o debaixo desce.
O sujeito canta o esgarçamento do sistema daqueles que usaram a cidade em busca de saída ilusória. Migrações: fluxos e refluxos da massa humana. Olhar panorâmico, o sujeito (caranguejo com cérebro) usa a canção para denunciar, mas, talvez, principalmente, para respirar.
"A cidade" (resposta em forma de embolada à situação do sujeito) é o veneno - que pode curar ou matar, ou, pelo menos, manter a vida no caos.

***

A cidade
(Chico Science)

O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas
Que cresceram com a força de pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam vigiando as pessoas
Não importa se são ruins, nem importa se são boas
E a cidade se apresenta centro das ambições
Para mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões policiais, camelôs

A cidade não pára, a cidade só cresce
O de cima sobe e o debaixo desce

A cidade se encontra prostituída
Por aqueles que a usaram em busca de saída
Ilusória de pessoas de outros lugares
A cidade e sua fama vai além dos mares
No meio da esperteza internacional
A cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos

A cidade não pára, a cidade só cresce
O de cima sobre e o debaixo desce

Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu
Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu
Pra a gente sair da lama e enfrentar os urubu
Num dia de sol Recife acordou
Com a mesma fedentina do dia anterior

Um comentário:

Ricardo Moreira disse...

Obrigado meu querido. Felicidades p vcs também.

O projeto está cada vez mais lindo e informativo. Parabéns.