12 dezembro 2010

346. Corsário

"Há um incêndio sob a chuva rala", Cazuza cantou em "Blues da piedade". Ou seja, para além das aparências há algo, no caso, mais intenso e inflamável. Se com Nietzsche começamos a observar que além do bem e do mal só há o bem e o mal, a poesia (a canção) desde sempre tenta criar situações em que o indivíduo possa ser confrontado com este além, este pós que "surpreende a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando é o óbvio", como Caetano canta em "Um índio".
A poesia presentifica o óbvio: ilumina as coisas simples da vida, dá-lhes sentidos e faz conexões insuspeitadas ao indivíduo imerso no mar do cotidiano. O poeta, eis um dos motivos porque ele deveria ser expulso da república, capta o desejo de sua gente e, com os elementos mais ordinários, intervem na ordem dada como certa, expondo-a sem máscaras.
Em "Corsário", de João Bosco e Aldir Blanc, o sujeito canta aquilo que está encoberto por certa frieza: seu coração tropical. Ele ferve, apesar do cofre gelado; nele a voz (do cantor) encontra o motor exato para seguir: "navegar é preciso" e estar no mar é condição humana demasiada humana.
A neve não resiste ao coração tropical: ao sangue (quente) do poeta, e que lhe faz escrever "mar" como saída e destino. O mar - tempo/espaço líquido das paixões - aparece como o reduto propício ao sujeito sozinho e disposto ao abandono-de-si; mas desejoso, em um cais imaginado, do reencontro consigo: a individuação, a distinção entre a polifonia marítima.
O corsário é o sujeito armado de solidão e calor. Ele parte com seu canto (suas palavras - mar - e sua melodia) o gelo (a automatização) cotidiano: confortável e cômoda e, por isso, sedutora e prisioneira. É preciso ir indo.
Pirata, o sujeito rouba da vida a própria vida motivadora de mobilidade. Ele canta o mar (com seu horizonte infinito) para se lançar ao mar arrebentando as amarras que lhe prendem os sentidos e lhe congela o juízo.
Guardada no disco Essa é a sua vida (1981), de João Bosco, "Corsário" é o canto do homem frio em início de despertamento para novas possibilidades de vida. Cansado de ser fiel às próprias certezas, ele entoa e plasma o prelúdio (mesmo em ritmo de tartaruga) do novo tempo: há um cheiro longínquo de primavera (roseirais) no ar. E cada palavra cantada sua é rosa germinando; é fenda no gelo. E em cada palavra (mensagem lançada ao mar) sua está o sujeito todo, inteiro, se dando de graça à graça (divina) do ouvinte.

***

Corsário
(Aldir Blanc, João Bosco)

Meu coração tropical
está coberto de neve, mas,
ferve em seu cofre gelado
e a voz vibra e a mão escreve: mar
Bendita a lâmina grave
que fere a parede e trás
as febres loucas e breves
que mancham o silêncio e o cais

Roseirais
Nova Granada de Espanha
Por você, eu, teu corsário preso
vou partir a geleira azul da solidão
e buscar a mão do mar,
me arrastar até o mar,
procurar o mar

Mesmo que eu mande em garrafas
mensagens por todo o mar,
meu coração tropical
partirá esse gelo e irá
com as garrafas de náufrago
e as rosas partindo o ar
Nova Granada de Espanha
e as rosas partindo o ar

14 comentários:

  1. Gosto bastante da versão de Ney Matogrosso de 1974, no album Água do Céu - Pássaro.

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  2. a versão da elis é definitiva,mesmo não sendo feita em estúdio.Mesmo com a análise, a letra não me ficou muito clara.eu devo ser meio tonto mesmo.

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    1. Quem sabe se se deve ao erro ortográfico! Traz as febres loucas, verbo trazer!

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    2. Quem sabe se se deve ao erro ortográfico! Traz as febres loucas, verbo trazer!

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    3. Não há erro de concordância. O sujeito: a lâmina grave fere e traz. A lâmina traz as febres...

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  3. Joao bosco sozinho e seu violao é sempre a melhor pedida, inigualavel o mestre !

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  4. Caramba...eu sempre pensei que esta canção fosse uma coisa de bilhete de amigo para amigo, com pedido conselho socorro de medo da morte que andava rondando – ah, rondava feito lobo sem fome mas sempre faminto. Acho que a Elis cantou isso melhor, inteiro e inteira, ela e a carreira que terminavam, juntas; e talvez por acaso ou quase foi naquele mesmo ano, 1982, que a canção nasceu quando Elis morreu. Estava a nevar demais naquele tempo. E o tempo todo.
    Que nem hoje.
    Que nem sempre.

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  5. Passou errado! Foi mal: a canção foi composta no quase meio dos 70. Mas "nascer" assim com corpo e voz pra depois morrer, eu penso, foi com a gravação da Elis. será?

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  6. ESSA MÚSICA TEM UM CONTEXTO TOTALMENTE SÓCIO-POLITICO, UMA CRITICA AO BRASIL OPRESSOR E DITADOR DOS ANOS 60 E 70, FALA DO EXILIO, DE VOLTAR, "PROCURAR O MAR" COM INSISTÊNCIA A (PÁTRIA), CORTAR COM O REGIME OPRESSOR ATRAVÉS DA COMUNICAÇÃO (MESMO JOGANDO GARRAFAS...)
    CORTA COM A LÂMINA A GELEIRA... O ESTADO FRIO E INÉRTE...É DISSO QUE FALA A MÚSICA...CORSÁRIO (NAVEGADOR) SEM PODER NAVEGAR POR ESTAR PRESO POR VC (PÁTRIA)...

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  7. ESSA MÚSICA TEM UM CONTEXTO TOTALMENTE SÓCIO-POLITICO, UMA CRITICA AO BRASIL OPRESSOR E DITADOR DOS ANOS 60 E 70, FALA DO EXILIO, DE VOLTAR, "PROCURAR O MAR" COM INSISTÊNCIA A (PÁTRIA), CORTAR COM O REGIME OPRESSOR ATRAVÉS DA COMUNICAÇÃO (MESMO JOGANDO GARRAFAS...)
    CORTA COM A LÂMINA A GELEIRA... O ESTADO FRIO E INÉRTE...É DISSO QUE FALA A MÚSICA...CORSÁRIO (NAVEGADOR) SEM PODER NAVEGAR POR ESTAR PRESO POR VC (PÁTRIA)...

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  8. E só aos sessenta anos me aparece o desejo de ir "além-mar" e conhecer a poesia desta belíssima composição musical. Surpreendente a posição do sujeito buscando além dele mesmo aquilo que está dentro dele. Encantada.

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  9. Anônimo, obrigado pela explicação, adoro essa musica

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  10. Essa música sempre me intrigou por não entender sobre o que falava. Faz sentido a explicação do Prof. Leonardo, mas também cabe muito bem no contexto sócio-político da época. Adorei entender um pouco mais dela. Obrigada.

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  11. “Pirata, o sujeito rouba da vida a própria vida motivadora de mobilidade.” Forte isso.

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