Um filme, ou um livro, ou uma canção, só começa quando termina. Explico: um filme, seu impacto em mim, só começa a se desenrolar no instante em que saio da sala escura, pois é neste momento que começo a perceber os resíduos que ficaram e a dar algum sentido (interno, pessoal e intransferível) àquilo que eu assisti "apenas" como espectador.
Com a literatura é um pouco diferente. As várias pausas na leitura, o cíclico abrir e fechar do livro, favorece uma digestão mais lenta (melhor?). Seja como for, só quando o livro termina é que ele começa a ser assimilado em mim. Pela crítica eu me aproximo do texto. A realidade que a ficção criou interfere na minha realidade. E eu, por minha vez, atravesso a ficção com minha crítica, fingindo a situação empírica.
A leitura convoca às interferências: preenchem a ideia de leitura. E eu me torno o autor da obra, pois a leitura é a permanência da humanidade.
Mas e a canção? Aquela ouvida despretenciosamente, no rádio, enquanto vamos para o trabalho, ou enquanto lavamos a louça, ou enquanto engomamos a calça? A brevidade da canção realiza a vida porque ali, assim como no filme ou no livro, a vida não precisa existir.
Breves, as canções são porções mágicas que (ao equilibrar palavra e melodia: itens básicos para situar o indivíduo no mundo) nos avisam que nós somos algo feito para ser cantado; que a arte é mentira, mas através da mentira eu chego à (minha) verdade.
O sujeito de "Com a boca no mundo", de Lee Marcucci, Luiz Sérgio e Rita Lee, canta mesmo com a desaprovação dos caretas. Canta porque, apesar "deles", o sujeito precisa cindir o que a vida ordinária oferece como verdade. "Eles", os mantenedores da moral e das tradições objetivamente forjadas, não aceitam que a vida só existe porque ela ignora o que é. Eis uma das funções do sujeito-cantor: mostrar que as palavras cantadas guardam sentidos, mas não guardam significação.
É por isso que o sujeito termina a canção dizendo: "Essa melodia não acaba quando eu resolver parar de cantar". Ou seja, o que ele quis dizer já disse, cabe ao ouvinte ouvir. Ao invés de morrer, única saída encontrada por "eles", o sujeito canta: causa pane nas certezas pré-datadas. Aliás, toda verdade é pré-datada, a ficção sabe e investe nisso: e se defende, deixando claro que é ficção, contra qualquer imposição do "real".
A versão de Ney Matogrosso (Vivo, 2000) é bem mais enfática do que a versão feita pela própria Rita Lee. Enquanto ela investia no costumeiro (gracioso e ácido) humor, Ney investe na cara dura: bota a boca no mundo; figurativiza a fome de vontade de viver do sujeito.
A comparação com o tico-tico é bastante relevante: pássaro, ele é cantor, assim como o sujeito da canção: cantor do mundo, que protesta contra o mundo previamente "dito e feito".
Ao final, o sujeito deseja chamar a atenção do ouvinte (aquele que serve e é servido pelo sistema; aquele que está feliz com seu emprego fixo e sendo um cidadão respeitado): a vida pode e deve oferecer muito mais.
"Em pleno movimento, meu corpo é um instrumento, eu sopro aos sete ventos", diz o sujeito. A canção é hálito e odor de uma voz que fala impondo presença. O sujeito fez a parte dele, a canção cumpriu sua missão: comover, desestabilizar. Fica ao ouvinte a tarefa de não deixar a melodia acabar: encenar a vivência da canção.
A leitura convoca às interferências: preenchem a ideia de leitura. E eu me torno o autor da obra, pois a leitura é a permanência da humanidade.
Mas e a canção? Aquela ouvida despretenciosamente, no rádio, enquanto vamos para o trabalho, ou enquanto lavamos a louça, ou enquanto engomamos a calça? A brevidade da canção realiza a vida porque ali, assim como no filme ou no livro, a vida não precisa existir.
Breves, as canções são porções mágicas que (ao equilibrar palavra e melodia: itens básicos para situar o indivíduo no mundo) nos avisam que nós somos algo feito para ser cantado; que a arte é mentira, mas através da mentira eu chego à (minha) verdade.
O sujeito de "Com a boca no mundo", de Lee Marcucci, Luiz Sérgio e Rita Lee, canta mesmo com a desaprovação dos caretas. Canta porque, apesar "deles", o sujeito precisa cindir o que a vida ordinária oferece como verdade. "Eles", os mantenedores da moral e das tradições objetivamente forjadas, não aceitam que a vida só existe porque ela ignora o que é. Eis uma das funções do sujeito-cantor: mostrar que as palavras cantadas guardam sentidos, mas não guardam significação.
É por isso que o sujeito termina a canção dizendo: "Essa melodia não acaba quando eu resolver parar de cantar". Ou seja, o que ele quis dizer já disse, cabe ao ouvinte ouvir. Ao invés de morrer, única saída encontrada por "eles", o sujeito canta: causa pane nas certezas pré-datadas. Aliás, toda verdade é pré-datada, a ficção sabe e investe nisso: e se defende, deixando claro que é ficção, contra qualquer imposição do "real".
A versão de Ney Matogrosso (Vivo, 2000) é bem mais enfática do que a versão feita pela própria Rita Lee. Enquanto ela investia no costumeiro (gracioso e ácido) humor, Ney investe na cara dura: bota a boca no mundo; figurativiza a fome de vontade de viver do sujeito.
A comparação com o tico-tico é bastante relevante: pássaro, ele é cantor, assim como o sujeito da canção: cantor do mundo, que protesta contra o mundo previamente "dito e feito".
Ao final, o sujeito deseja chamar a atenção do ouvinte (aquele que serve e é servido pelo sistema; aquele que está feliz com seu emprego fixo e sendo um cidadão respeitado): a vida pode e deve oferecer muito mais.
"Em pleno movimento, meu corpo é um instrumento, eu sopro aos sete ventos", diz o sujeito. A canção é hálito e odor de uma voz que fala impondo presença. O sujeito fez a parte dele, a canção cumpriu sua missão: comover, desestabilizar. Fica ao ouvinte a tarefa de não deixar a melodia acabar: encenar a vivência da canção.
***
Com a boca no mundo
(Lee Marcucci / Luiz Sérgio / Rita Lee)
Quantas vezes eles vão me perguntar
Se eu não faço nada a não ser cantar,
Quantas vezes, eles vão me responder
Que não há saída a não ser morrer
Isso não tem mais jeito
Foi tudo dito e feito
Agora não é tempo
Da gente se esconder
Tenho mais é que botar a boca no mundo
Como faz o tico-tico quando quer comer
Essa fome é vontade de viver
Chamar atenção pra você me ver
Em pleno movimento
Meu corpo é um instrumento
Eu sopro aos sete ventos
Pra você me escutar
Pra você me ver
Pra me ouvir falar
Disso tudo
Essa melodia não acaba
Quando eu resolver parar de cantar
(Lee Marcucci / Luiz Sérgio / Rita Lee)
Quantas vezes eles vão me perguntar
Se eu não faço nada a não ser cantar,
Quantas vezes, eles vão me responder
Que não há saída a não ser morrer
Isso não tem mais jeito
Foi tudo dito e feito
Agora não é tempo
Da gente se esconder
Tenho mais é que botar a boca no mundo
Como faz o tico-tico quando quer comer
Essa fome é vontade de viver
Chamar atenção pra você me ver
Em pleno movimento
Meu corpo é um instrumento
Eu sopro aos sete ventos
Pra você me escutar
Pra você me ver
Pra me ouvir falar
Disso tudo
Essa melodia não acaba
Quando eu resolver parar de cantar
O Ney gravou isso originalmente em 77. Tente ouvir essa versão. Está na caixa Camaleão que eu reeditei. É apoteótica.
ResponderExcluirÓtimo comentário! Sinto mesmo que esta música me é provocativa, convidativa! Como uma voz que grita uma verdade inconveniente.
ResponderExcluirAliás achei a proposta do blog bem interessante, vou ler os outros post.