30 novembro 2010

332. Serenata

O acontecimento de uma serenata é carregado de imagens românticas: do indivíduo que canta no sereno acompanhado de parceiros sob a janela da amada até o banho de água fria, literalmente, jogado pelo pai da moça. Seresteiro que se preze precisava termina sua performance molhado sob o sereno da madrugada.
As juras de amor vinham carregadas de muito sofrimento, certo ressentimento e algum recalcamento. Afinal, a filosofia da seresta era rimar amor e dor: fazer as fibras do coração pungente fumegar de emoções. Os possíveis suspiros da musa do destempero só agravava isso.
Da modinha de salão às ruas, quando o gênero foi denominado, a seresta (prima-irmã da serenata) embalou corações apaixonados. Sem dúvidas, o nosso cancioneiro popular (até hoje, basta ver a enorme quantidade de canções que tematizam o desamor) bebeu bastante nesta verve cancional.
Nestas canções há uma áurea de amor puro e terno, ainda não afetado pelas "mudernidades", e que se refere a um tempo em que a vida parecia passar mais devagar, facilitando os acontecimentos amorosos e revirando os desejos dos amantes.
O sujeito de tais canções canta a solidão existencial: a terrível impossibilidade de fazer o outro sentir o que eu sinto. A solidão é relatada sob pontuações que indiciam as angústias do indivíduo. É neste contexto interior que surge a voz do abandono: resposta à incompreensão e ao fato de ser preterido. Estar só é está com sua realidade: eis o que canta o sujeito.
Sílvio Caldas gravou o disco Serenata (1957) reunindo canções que carregam nas tintas do amor desprezado e/ou impossibilitado pelas mais diversas questões. Seresteiro, o caboclinho querido deu voz a sujeitos que não tinham vergonha, muito ao contrário, de contar o fel e o sangue de amor.
Tal canto é construído depois que passa pelo crivo daquilo que resulta da expectativa frustrada, ou, muitas vezes, pelo simples e complexo sentir e não poder consumar o desejo, já que, em tais canções, o desejo parece querer se impor a qualquer racionalidade.
O sujeito da canção "Serenata", de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa, condensa naquilo que diz (canta) os signos do seresteiro sugeridos acima. E encontra na voz de Sílvio a bela agonia daquilo que sente e diz que sente: "Na serpente de seda dos teus braços alguém dorme ditoso sem saber que eu vivo a padecer e o meu coração feito em pedaços vai sorrindo ao teu amor, mascarado desta dor", diz.

***

Serenata
(Silvio Caldas / Orestes Barbosa)

Dorme, fecha esse olhar entardecente
Não me escute, nostálgico, a cantar
Pois não sei se feliz ou infelizmente
Não me é dado, beijando, te acordar

Dorme, deixa os meus cantos delirantes
Dorme, que eu olho o céu a contemplar
A lua que procura diamantes
Para o seu lindo sonho ornamentar

Na serpente de seda dos teus braços
Alguém dorme ditoso sem saber
Que eu vivo a padecer
E o meu coração feito em pedaços
Vai sorrindo ao teu amor
Mascarado desta dor

No teu quarto de sonho e de perfume
Onde vive, a sorrir, teu coração
Que é teatro da ilusão
Dorme, junto aos teus pés, o meu ciúme
Enjeitado e faminto como um cão

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