08 novembro 2010

312. O vira

Como sabemos, gatos pretos são associados a vários tipos de sortilégios: "dão azar". Na literatura, por exemplo, o conto "O gato", de Edgar Allan Poe, é a convergência de todos os maus presságios que a figura do felino pode engendrar.
Nunca é demais lembrar que os gatos pretos entraram na lista dos hereges perseguidos pela Inquisição. Não havia, portanto, figura mais simbólica para ser incorporada à mística do trio formado por João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad. Era exatamente isso, ou melhor, brincar com os sentidos cristalizados das coisas, que os Secos & molhados queriam e fizeram ao gravar "O vira", de João Ricardo e Luli.
Com um ritmo estranho e híbrido (algo que antecipou o rock dos anos 80) sobre a típica (e folclórica) "dança portuguesa", o grupo, rostos ocultos e movimentos hipnotizantes de corpo, em "O vira" (Secos & Molhados, 1973), chamava atenção para a androginia do desejo: para a pele sem pele das vontades; para as múltiplas vidas.
Abro um parêntesis para lembrar da canção "Vira vira", de Júlio e Dinho, do grupo Mamonas assassinas que com um único disco (1995) entrou para a história da canção brasileira pela anarquia sugerida e por zombar (com alegria) dos caretas de plantão.
Voltando aos Secos e Molhados, eles mexiam, de uma só tacada, com vários signos da cultura formadora do "macho adulto branco" brasileiro. O refrão "vira, vira, vira homem / vira, vira, viar lobisomem" tanto desperta a atenção para a metamorfose de algo distante do ouvinte; quanto representa um imperativo exigindo que o outro se defina: homem ou lobisomem?; mas ainda pode ser ouvido como um luxurioso convite à mutação.
Para João Silvério Trevisan, no livro Devassos no paraíso, "O lobisomem, no caso, referia-se ironicamente a esses anônimos habitantes da grande cidade, que após a meia-noite deixam seu cansativo papel de abóboras para se transformar em atrevidas conderelas"; passam por debaixo da escada para, lá no fundo azul, longe dos olhares inquisidores, ser o que são.
Vocalista do grupo, aquele que veio para confundir, Ney Matogrosso, com sua "postura de afronta sexual", como o autor destaca, é personificação da dúvida que balança. Em entrevista a Vânia Toledo e Nelson Motta, à revista Interview, Ney dispara: "para mim isso é uma missão, acabar com essa história de que homossexual é uma coisa triste, sofrida, que tem de ficar se escondendo".
Para Trevisan, "a ambiguidade ['virulenta entre nós'] dos Dzi Croquetes [grupo de rapazes que unia várias linguagens artíticas no palco para "viver perigosamente até o fim" as possibilidades do prazer] chegava nele [Ney Matogrosso] a um verdadeiro paroxismo".
Clarice Lispecto dizia que "os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o que me interessa". Parece ser o mesmo sussurro que interessava aos Secos & Molhados: o além das aparências, mas que se percebe nas próprias aparências.

***

O vira
(João Ricardo / Luli)

O gato preto cruzou a estrada
Passou por debaixo da escada
E lá no fundo azul
na noite da floresta
A lua iluminou
a dança, a roda, a festa

Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem, vira, vira
Vira, vira, lobisomen
Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem, vira, vira

Bailam corujas e pirilampos
entre os sacis e as fadas
E lá no fundo azul
na noite da floresta
A lua iluminou
a dança, a roda, a festa

Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem, vira, vira
Vira, vira, lobisomen
Vira, vira, vira
Vira, vira, vira homem, vira, vira

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