Em Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes afirma que a verdade "é aquilo que está ao lado". Assim, tudo que estaria longe dos olhos, mesmo perto do coração, é ilusão e/ou engano.
Sem querer entrar na complexa discussão sobre o que é o real, o fato é que toda paisagem é ficcional (movediça) e só vemos aquilo que queremos ver. E se tudo que é sólido se desmancha (muda) no ar, o que podemos dizer dos sentimentos e das subjetividades de cada um?
Bernardo Soares, no Livro do desassossego, sentencia: "Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos". Ou seja, como a verdade de cada indivíduo é incomunicável (as palavras não dão conta), a mentira (fingir uma dor que deveras sente) é a única forma de entrarmos em contato com o outro: nosso irmão, na terra.
Mentir é a única maneira de viver socialmente. "Fingir é amar". Obviamente, isso subverte aquilo que aprendemos comumente como sendo o amor: sincero e verdadeiro. Daí o estranhamento do sujeito da canção "Sabes mentir", de Othon Fortes Russo.
Claro, na letra, percebe-se o rancor com que o sujeito percebe as mentiras do outro: castelo construído sobre areia movediça. Saber que fomos enganado não é fácil, talvez por isso a conclusão de Bernardo Soares: uma forma de, ao saber, de antemão, que a mentira é a única forma de nos relacionarmos, ficar "protegido" da dor.
Ao apontar o dom de iludir do outro, o próprio sujeito de "Sabes mentir" esquece que também está mentindo: afinal o canto de sua dor, não expressa, verdadeiramente, a dor. O sujeito circula os próprios sentimentos, mas jamais chegará ao núcleo absoluto.
"Sempre a iludir, tu beijavas com afeição", aponta o sujeito. Ora, ao verificar a afeição do outro, mesmo entre ilusões, o sujeito se contradiz. Amar, em visão otimista/romântica, é cria para si a ilusão do afeto incondicinal. O amor acaba, portanto, quando "cansamos" de nos iludir: quando percebemos que não conseguimos mais cantar (dar vida) a determinada ficção.
Aliás, transferir para o outro, como faz o sujeito da bela "Sabes mentir", a responsabilidade do fim da ilusão (que nos sustenta na vida "real") é o jeito mais comum de fugir do enfrentamento com regiões (ainda) sombrias de nosso ser.
No disco Ária (2010), Djavan assume a persona do sentido exato do título: canta/interpreta composições (fingidamente) feitas para um cantor solista; trabalha apenas com canções de outros autores, mas, como ótimo solista, imprime sua marca: borra os limites da autoria. Entre as árias de Ária, "Sabes mentir", do repertório de Ângela Maria, soa leve, como anotações de rodapé de um amor verdadeiro em sua consciência-de-si: fingido.
A outra versão (complementar) investe no bolero, com seus temas melódicos românticos e lentos, ampliando a dimensão passional da interpretação de uma das nossas rainhas do rádio: Ângela Maria (1956). Aqui a canção ganha um tom de revanche: com a mulher acusando o homem de falso e mentiroso. Assim, no jogo sinuoso das relações interpessoais há apenas uma certeza: no balanço das horas tudo pode mudar.
Munidos destes conceitos-dúvidas, percebemos que, na canção popular, há certa tradição em tratar a mulher como a detentora do "dom de iludir": motivo dos sofrimentos masculinos. Claro que, mais tarde, Cazuza cantaria que "mentiras sinceras" interessam, mas este é outro (dos muitos) arco da íris dos olhos da canção.
O sujeito de "Sabes mentir" canta a descoberta da traição, do fingimento das palavras e da emoção encenada. Ora, ele canta a própria poesia. Arte de torcer a verdade e de violentar o fascismo da língua (afetiva também).
Amar é fingir: é criar (ficcionalizar) sentidos para o que não tem governo, nem nunca terá. Saber mentir (falar com ardor: com verdade) é a forma (toda humana) de viver na vida. E, como todos nós que estamos sempre a espera do canto alheio, o sujeito da canção se deixou arrastar pela sereia: só percebendo o lado bom e ruim disso agora: "Hoje esse amor já findou".
Sem querer entrar na complexa discussão sobre o que é o real, o fato é que toda paisagem é ficcional (movediça) e só vemos aquilo que queremos ver. E se tudo que é sólido se desmancha (muda) no ar, o que podemos dizer dos sentimentos e das subjetividades de cada um?
Bernardo Soares, no Livro do desassossego, sentencia: "Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos". Ou seja, como a verdade de cada indivíduo é incomunicável (as palavras não dão conta), a mentira (fingir uma dor que deveras sente) é a única forma de entrarmos em contato com o outro: nosso irmão, na terra.
Mentir é a única maneira de viver socialmente. "Fingir é amar". Obviamente, isso subverte aquilo que aprendemos comumente como sendo o amor: sincero e verdadeiro. Daí o estranhamento do sujeito da canção "Sabes mentir", de Othon Fortes Russo.
Claro, na letra, percebe-se o rancor com que o sujeito percebe as mentiras do outro: castelo construído sobre areia movediça. Saber que fomos enganado não é fácil, talvez por isso a conclusão de Bernardo Soares: uma forma de, ao saber, de antemão, que a mentira é a única forma de nos relacionarmos, ficar "protegido" da dor.
Ao apontar o dom de iludir do outro, o próprio sujeito de "Sabes mentir" esquece que também está mentindo: afinal o canto de sua dor, não expressa, verdadeiramente, a dor. O sujeito circula os próprios sentimentos, mas jamais chegará ao núcleo absoluto.
"Sempre a iludir, tu beijavas com afeição", aponta o sujeito. Ora, ao verificar a afeição do outro, mesmo entre ilusões, o sujeito se contradiz. Amar, em visão otimista/romântica, é cria para si a ilusão do afeto incondicinal. O amor acaba, portanto, quando "cansamos" de nos iludir: quando percebemos que não conseguimos mais cantar (dar vida) a determinada ficção.
Aliás, transferir para o outro, como faz o sujeito da bela "Sabes mentir", a responsabilidade do fim da ilusão (que nos sustenta na vida "real") é o jeito mais comum de fugir do enfrentamento com regiões (ainda) sombrias de nosso ser.
No disco Ária (2010), Djavan assume a persona do sentido exato do título: canta/interpreta composições (fingidamente) feitas para um cantor solista; trabalha apenas com canções de outros autores, mas, como ótimo solista, imprime sua marca: borra os limites da autoria. Entre as árias de Ária, "Sabes mentir", do repertório de Ângela Maria, soa leve, como anotações de rodapé de um amor verdadeiro em sua consciência-de-si: fingido.
A outra versão (complementar) investe no bolero, com seus temas melódicos românticos e lentos, ampliando a dimensão passional da interpretação de uma das nossas rainhas do rádio: Ângela Maria (1956). Aqui a canção ganha um tom de revanche: com a mulher acusando o homem de falso e mentiroso. Assim, no jogo sinuoso das relações interpessoais há apenas uma certeza: no balanço das horas tudo pode mudar.
Munidos destes conceitos-dúvidas, percebemos que, na canção popular, há certa tradição em tratar a mulher como a detentora do "dom de iludir": motivo dos sofrimentos masculinos. Claro que, mais tarde, Cazuza cantaria que "mentiras sinceras" interessam, mas este é outro (dos muitos) arco da íris dos olhos da canção.
O sujeito de "Sabes mentir" canta a descoberta da traição, do fingimento das palavras e da emoção encenada. Ora, ele canta a própria poesia. Arte de torcer a verdade e de violentar o fascismo da língua (afetiva também).
Amar é fingir: é criar (ficcionalizar) sentidos para o que não tem governo, nem nunca terá. Saber mentir (falar com ardor: com verdade) é a forma (toda humana) de viver na vida. E, como todos nós que estamos sempre a espera do canto alheio, o sujeito da canção se deixou arrastar pela sereia: só percebendo o lado bom e ruim disso agora: "Hoje esse amor já findou".
***
Sabes Mentir
(Othon Fortes Russo)
Sabes mentir
Hoje eu sei que tu sabes sentir
Um falso amor
Abrigaste em meu coração
Sempre a iludir
Tu falavas com tanto ardor
Dessa paixão
Que dizias sentir
Mas tudo agora acabou
Para mim terminou a ilusão
Hoje esse amor já findou
E afinal para que amar
Sempre a iludir
Tu beijavas com afeição
Sempre a fingir
Uma falsa emoção
(Othon Fortes Russo)
Sabes mentir
Hoje eu sei que tu sabes sentir
Um falso amor
Abrigaste em meu coração
Sempre a iludir
Tu falavas com tanto ardor
Dessa paixão
Que dizias sentir
Mas tudo agora acabou
Para mim terminou a ilusão
Hoje esse amor já findou
E afinal para que amar
Sempre a iludir
Tu beijavas com afeição
Sempre a fingir
Uma falsa emoção
É incrível,esta música não sai da minha cabeça há dois dias,dou de cara com ela.
ResponderExcluir