No livro Água viva, de Clarice Lispector, a personagem/narradora diz: “Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras”. Ou seja, as palavras não dão conta de fixar aquilo que queremos dizer: é por isso que não paramos de falar, na tentativa, sempre frustrada, de tocar a vida (e as coisas).
Para se ouvir uma canção, para ler um poema, para fruir as palavras e as coisas, portanto, é preciso está com o corpo (todo) disponível. Erógeno e pulsante, o corpo precisa penetrar e ser penetrado pelo real/ficção (afinal, ficção e real são indistinguíveis).
Roçamos a vida (aquilo que imaginamos ser o real) com a ficção, que, por sua vez, cria a realidade. Em "Folhetim", de Chico Buarque, o sujeito da canção é uma mulher/sereia que só diz sim. Ela não tem grilos ao usar o corpo para cantar o desejo de vida. E avisa ao outro (ouvinte) que, caso ele a queira, é assim que ele a terá.
Ela evoca significantes que a compõem, enquanto personagem da canção e enquanto mulher: voz que afirma, inclina-se para o lado do sim. O que, a princípio, remete o ouvinte, a uma pessoa "fácil", já que ela exige pouco do outro, na verdade, tenciona a aceitação do sujeito pelo outro.
Desde o primeiro verso, a mulher desliza a questão de si para o outro: ela não exige pouco, pois exige que o outro a aceite como ela é: um efeito de real. Relacionar-se com ela implica na suspensão de certezas, já que ela não estabelece qualquer garantia. Afinal ela só diz sim: meias verdades.
Ouvir esta mulher é ouvi-la pelo corpo todo: pulsão do desejo. Ela deseja o outro na mesma medida em que este a deseja. Ela é a ficção. Nós, donos da verdade (grávidos de vaidade), supomos possuir a razão quando nos aproximamos das coisas (e das pessoas). Esta mulher zomba deste raciocínio, pois, basta um segundo olhar, tudo muda: as verdades dançam e já não valemos nada diante dos fatos.
A voz malemolente de Gal Costa (Água viva, 1978) materializa esta mulher/sereia que seduz o ouvinte (diz-lhe mentiras sinceras) para depois matá-lo: "Eis página descartada do meu folhetim". Ela canta a vida para o outro; acalenta o peso da existência (do real imaginário e, portanto, inalcançável); cria ficções/verdades e não nega que está fingindo.
O mais assombroso é que acreditamos nesta mulher (mergulhamos no mar da ilusão/verdade), pois precisamos dar sentido à vida, mesmo ela deixando claro que está fingindo. Obviamente, fingindo uma dor que deveras sente.
A ficção (a mulher, com seu dom de iludir) se oferece por muito pouco, pois sabe que não podemos resistir (mesmo oferecendo, em troca, uma pedra "falsa" ou um "sonho" de valsa) aos seus encantos de sereia, que nos canta: diz-nos verdades à meia luz. Ora, qual sonho não é falso, e ao mesmo tempo verdadeiro, haja vista nos direcionar na vida?
Esta mulher/sereia é metonímia do efeito de real necessário à vida. Contar até "vinte", aqui, além de rimar com "seguinte", funciona como adensador de nosso apego, nossa procura por sentidos: geralmente conta-se até dez, mas apegados, chafurdamos até vinte - além do tempo regulamentar.
Voláteis que são, na manhã seguinte (no próximo instante), as verdades já não nos servem mais. Muito menos servimos às verdades de ontem. Daí a circularidade da ilusão: a busca pelo (eterno) "instante-já", expressão cunhada por Clarice Lispector. Imbricados, encarnamo-nos nas palavras (e nas coisas) assim como elas se encarnam em nós: processo complexo - nossa bússola e desorientação.
Para se ouvir uma canção, para ler um poema, para fruir as palavras e as coisas, portanto, é preciso está com o corpo (todo) disponível. Erógeno e pulsante, o corpo precisa penetrar e ser penetrado pelo real/ficção (afinal, ficção e real são indistinguíveis).
Roçamos a vida (aquilo que imaginamos ser o real) com a ficção, que, por sua vez, cria a realidade. Em "Folhetim", de Chico Buarque, o sujeito da canção é uma mulher/sereia que só diz sim. Ela não tem grilos ao usar o corpo para cantar o desejo de vida. E avisa ao outro (ouvinte) que, caso ele a queira, é assim que ele a terá.
Ela evoca significantes que a compõem, enquanto personagem da canção e enquanto mulher: voz que afirma, inclina-se para o lado do sim. O que, a princípio, remete o ouvinte, a uma pessoa "fácil", já que ela exige pouco do outro, na verdade, tenciona a aceitação do sujeito pelo outro.
Desde o primeiro verso, a mulher desliza a questão de si para o outro: ela não exige pouco, pois exige que o outro a aceite como ela é: um efeito de real. Relacionar-se com ela implica na suspensão de certezas, já que ela não estabelece qualquer garantia. Afinal ela só diz sim: meias verdades.
Ouvir esta mulher é ouvi-la pelo corpo todo: pulsão do desejo. Ela deseja o outro na mesma medida em que este a deseja. Ela é a ficção. Nós, donos da verdade (grávidos de vaidade), supomos possuir a razão quando nos aproximamos das coisas (e das pessoas). Esta mulher zomba deste raciocínio, pois, basta um segundo olhar, tudo muda: as verdades dançam e já não valemos nada diante dos fatos.
A voz malemolente de Gal Costa (Água viva, 1978) materializa esta mulher/sereia que seduz o ouvinte (diz-lhe mentiras sinceras) para depois matá-lo: "Eis página descartada do meu folhetim". Ela canta a vida para o outro; acalenta o peso da existência (do real imaginário e, portanto, inalcançável); cria ficções/verdades e não nega que está fingindo.
O mais assombroso é que acreditamos nesta mulher (mergulhamos no mar da ilusão/verdade), pois precisamos dar sentido à vida, mesmo ela deixando claro que está fingindo. Obviamente, fingindo uma dor que deveras sente.
A ficção (a mulher, com seu dom de iludir) se oferece por muito pouco, pois sabe que não podemos resistir (mesmo oferecendo, em troca, uma pedra "falsa" ou um "sonho" de valsa) aos seus encantos de sereia, que nos canta: diz-nos verdades à meia luz. Ora, qual sonho não é falso, e ao mesmo tempo verdadeiro, haja vista nos direcionar na vida?
Esta mulher/sereia é metonímia do efeito de real necessário à vida. Contar até "vinte", aqui, além de rimar com "seguinte", funciona como adensador de nosso apego, nossa procura por sentidos: geralmente conta-se até dez, mas apegados, chafurdamos até vinte - além do tempo regulamentar.
Voláteis que são, na manhã seguinte (no próximo instante), as verdades já não nos servem mais. Muito menos servimos às verdades de ontem. Daí a circularidade da ilusão: a busca pelo (eterno) "instante-já", expressão cunhada por Clarice Lispector. Imbricados, encarnamo-nos nas palavras (e nas coisas) assim como elas se encarnam em nós: processo complexo - nossa bússola e desorientação.
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Folhetim
(Chico Buarque)
Se acaso me quiseres
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim
Por uma coisa à toa
Uma noitada boa
Um cinema, um botequim
E, se tiveres renda
Aceito uma prenda
Qualquer coisa assim
Como uma pedra falsa
Um sonho de valsa
Ou um corte de cetim
E eu te farei as vontades
Direi meias verdades
Sempre à meia luz
E te farei, vaidoso, supor
Que és o maior e que me possuis
Mas na manhã seguinte
Não conta até vinte
Te afasta de mim
Pois já não vales nada
És página virada
Descartada do meu folhetim
(Chico Buarque)
Se acaso me quiseres
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim
Por uma coisa à toa
Uma noitada boa
Um cinema, um botequim
E, se tiveres renda
Aceito uma prenda
Qualquer coisa assim
Como uma pedra falsa
Um sonho de valsa
Ou um corte de cetim
E eu te farei as vontades
Direi meias verdades
Sempre à meia luz
E te farei, vaidoso, supor
Que és o maior e que me possuis
Mas na manhã seguinte
Não conta até vinte
Te afasta de mim
Pois já não vales nada
És página virada
Descartada do meu folhetim
Uma das melhores músicas do chico,na primeira pessoa do feminino,e na voz da gal então ficou perfeita.
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