
Em "Tropicana", de Alceu Valença e Vicente Barreto, a bela introdução instrumental (malemolente) abre os trabalhos de uma canção cuja letra guarda o desejo de posse da totalidade: daquilo que define o outro.
É neste sentido que a canção de Alceu se relaciona intertextualmente com o "Côco de festa" usado pelo escritor João Guimarães Rosa como epígrafe do livro Corpo de baile. Enquanto aqui temos os versos "Da mandioca quero a massa e o beiju, / Do mundéu quero a paca e o tatú; / da mulher quero o sapato, quero o pé! / – quero a paca, quero o tatu, quero o mundé… / Eu, do pai, quero a mãe, quero a filha: também quero casar na família"; em "Tropicana" temos: "Da manga rosa quero o gosto e o sumo, / Melão maduro sapoti juá, / Jabuticaba teu olhar noturno, / Beijo travoso de umbu-cajá".
Ou seja, no final, enquanto um diz "Eu quero o tampo do balaio do cumbuco" o outro diz "Morena tropicana eu quero teu sabor": ambos querem aquilo que dá forma ao outro, aquilo que contorna tais formas: para conseguir chegar ao centro daquilo que diz quem o outro é.
Depois que se conhece a canção de Alceu, fica difícil ouvi-la (bem como "Côco de festa") sem fazer conexões. O mesmo estranhamento que o ouvinte desarmado sente, pela ignorância diante do vocabulário sertanejo, também pode ser experimentado diante da morena tropicana (sinestesia pura) criada por Alceu.
Importa apontar ainda que "Guampo" - palavra usada em "Côco de festa - é uma variante popular de aguardente de cana. Consciente ou não, Alceu dialoga com o texto dentro da obra de Rosa, na medida em que constrói (de forma fractualizada), uma canção em que cada verso contém o todo.
A cana está dentro da tropicana: embriagando o sujeito que canta sob o efeito do caldo. O desejo do sujeito é sempre conseguir o incomensurável: a massa, o gosto, o beiju, o sumo. Na impossibilidade disso, tudo se embala dionisiacamente na dança das sensações de uma linda morena fruta temporana.
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Tropicana
(Alceu Valença / Vicente Barreto)
Da manga rosa quero o gosto e o sumo
Melão maduro sapoti juá
Jabuticaba teu olhar noturno
Beijo travoso de umbu-cajá
Pela macia ai carne de caju
Saliva doce doce mel mel de uruçu
Linda morena fruta de vez temporana
Caldo de cana-caiana
Vem me desfrutar
Linda morena fruta de vez temporana
Caldo de cana-caiana
Vou te desfrutar
Morena tropicana
Eu quero teu sabor
(Alceu Valença / Vicente Barreto)
Da manga rosa quero o gosto e o sumo
Melão maduro sapoti juá
Jabuticaba teu olhar noturno
Beijo travoso de umbu-cajá
Pela macia ai carne de caju
Saliva doce doce mel mel de uruçu
Linda morena fruta de vez temporana
Caldo de cana-caiana
Vem me desfrutar
Linda morena fruta de vez temporana
Caldo de cana-caiana
Vou te desfrutar
Morena tropicana
Eu quero teu sabor
Oi, Leo. Como vai? Só agora li sua entrevista. Que máximo, hein! Muito bacana seu projeto, tem algo de casual, uma boa dose de ousadia e grande bagagem cultural. Parabéns! Vou ficar de olho no seu blog. Abraço.
ResponderExcluirEm "Morena Tropicana", tudo é pra lá de sugestivo. No começo, parece que estamos no campo da metáfora, como que havendo uma elipse no verso inicial: (assim como) "Da manga rosa eu quero o gosto e o sumo / [...] Morena tropicana, eu quero o teu sabor".
ResponderExcluirJá no fim da canção, fica a sensação de não havia metáfora nenhuma, e o sujeito está mesmo falando do gosto e do sumo da mulher: beijo, saliva, fluidos. Desejo de conjunção completa: as relações de analogia entre os verbos comer/beber/gozar.
Incrível como seus posts disparam, em nossa cabeça, tanta coisa sobre as canções.